domingo, 23 de setembro de 2007

O Boneco de Pano



...


"Levado de volta a realidade pelas palavras finais de seu poema, o boneco perguntou-se mais uma vez, como poderia alcançar o chão de forma segura.


Não imaginava que fosse capaz de descer pelo lençol, pois pelo que se lembrava, nunca ouvira falar de um boneco, que fora bem sucedido em semelhante empreitada. O mesmo se dava quando pensava em escorregar por uma das pernas da cama.


Cogitou até mesmo pular, de uma só vez. Mas o medo a respeito de uma coisa desconhecida, chamada morte, lhe impedia de levar a cabo sua idéia.


Não tendo, pois, qualquer plano de como proceder, sentou-se à beira da cama, com os pés a balançar. Ansioso pra que de alguma forma, esperada ou inesperada, uma resposta aparecesse.


-Não seja covarde ! - o boneco ouviu alguém dizer. E por um momento ficou apavorado. Não havia mais ninguém a vista e ele chegou a pensar que sua própria boca houvesse falado por livre vontade.


-Vamos molenga, pule ! - bradou novamente a voz, aborrecida com o susto do boneco. E esse percebendo que sua boca não poderia ser tão mal-educada, perguntou à voz misteriosa.: -Quem está ai?


-Eu – foi a resposta. - Aqui embaixo, perto do pé da cama.


Ao voltar-se pro lugar indicado, o boneco viu uma enorme ratazana. E ela lhe pareceu extremamente feia, embora não conhecesse muitas, pra poder dizer ao certo.


-O que faz ai embaixo? - inquiriu o boneco, curioso e até satisfeito, por ter com quem conversar.


-O mesmo que você ai em cima – retorquiu o monstrengo – Absolutamente nada. E agora desça logo daí.


-Mas como eu posso descer?


-Ora, que pergunta ! Pulando é claro.


-Pulando?! - e em dúvida o boneco coçou o queixo, por um momento. - E se eu morrer?


-Nesse caso não haverá problema. - disse o rato, já um pouco irritado – O problema é se você cair, se machucar muito e continuar vivo. Dizem que dói muito.


Concluindo que o rato tinha uma parcela de razão e confiante de que não se machucaria, por ser feito de pano e algodão, o boneco pulou. E pra um primeiro salto perigoso ele aterrissou de maneira espetacular. De cabeça no chão.


Suspeitando que tivesse morrido na queda, o boneco decidiu não se mover, afinal não sabia muito bem como um morto devesse se comportar.


-Ei molenga. - esbravejou o rato, cheio de raiva por aquela demora. - Vai ficar ai por muito tempo é?


-Só enquanto eu estiver morto – disse o boneco, esforçando pra não se mover muito.


O rato bateu na testa desanimado. Nunca vira ninguém tão tonto. E já tinha visto muitos humanos por ai. Mas sentindo-se um pouco culpado por aquela situação, esclareceu:


-Você não está morto.


-E como sabe?


-Simples. Se você estivesse morto. Haveria um monte de gente por aqui, chorando o quão boa pessoa você era em vida. E quanto pior o seu caráter, mais pessoas estariam aqui.


-Isso é estranho – concluiu o boneco, decidindo que realmente não estava morto, e pondo-se de pé.


-Não é não – rebateu o rato – São as regras.


Enquanto falava, o rato ia em direção a um enorme buraco, que havia na parede. E o boneco, sentindo-se indelicado, alcançou o rato e lhe estendeu a mão:


-Muito prazer – disse ele – eu sou o boneco.


-Não, não, não, não. Está tudo errado. - xingou o rato, movimentando os braços no ar, como se ofendido enormemente por aquelas palavras - Não é assim que se faz. Você tem que seguir as regras. Eu vou te mostrar.


Deu 3 voltas ao redor do boneco, alisou os pêlos da cabeça com a mão e falou, da maneira mais pomposa possível:


-Muito prazer. Eu tenho três bolachas, duas lasquinhas de madeira e 4 restos de queijo. E você, o que tem?


O boneco tateou a procura de algo nos bolsos, mas nem bolsos tinha. Pensou, repensou e não conseguiu pensar em nada. Ao cabo de alguns minutos respondeu, vendo a impaciência nos olhos do rato:


-Eu não tenho nada.


-Nada !?! - explodiu o rato, furioso – E eu perdendo meu precioso tempo com você ! - e súbito afastou-se sem esperar por mais detalhes.


-Ah! - exclamou o boneco, feliz por lembrar-se de algo. E o rato, interessado em que podia ser, parou pra ouvir.


-Eu tenho a minha vida.


-Não conta – atalhou o rato, chateado. - vida não conta.


-E por que não conta?


-E ainda pergunta?! Vida não se hipoteca, não se aluga, nem se vende. Ou seja, não serve pra nada.


-Então não tenho nada – suspirou o boneco, diante de tantos argumentos.


O rato fitou o boneco por alguns segundos, e uma idéia estalou em sua mente.


-Já sei, já sei. Não fique triste, vou te ajudar. - E sem esperar que o boneco, ainda triste, respondesse o rato aproximou-se e de um só puxão, arrancou um dos botões que servia de olho ao boneco.


-Ei ! -berrou o boneco, tarde demais. - o que é que você está fazendo?


-Não seja resmungão – retorquiu o rato e devolveu ao boneco o olho que lhe tirara – pronto, agora você tem um botão.


-Não entendo a vantagem – disse o boneco, aborrecido – agora não tenho um olho.


-Mas você ainda é capaz de enxergar com um olho só. E poderá usar esse botão pra se tornar alguém. Vamos lá, experimente.


O boneco se sentia um pouco frustrado, um pouco desolado, um tanto desorientado, mas resolveu tentar, mesmo que só pra alegrar o rato:


-Muito prazer. Eu tenho um botão.


E o rato aplaudiu bem alto. Enquanto assobiava e corria de um lado pro outro, fazendo as vezes de uma grande plateia.


-Isso ! Isso ! - berrou satisfeito – Viva ! Ele tem um botão. É !!


Para o boneco aquilo não fazia muito sentido. E apesar da agitação do rato, tudo que ele conseguia fazer, era olhar tristemente para seu novo pertence, sem sentir que era alguém por tê-lo. Refletiu que talvez, um olho fosse pouco demais pra ser alguém.


-Eu ainda preferia ter dois olhos. -disse ele por fim.


-Como você é mal agradecido ! Ouça bem, vou te dar um último conselho, porque não estou aqui pra aturar sua ingratidão de graça e um botão não é o bastante pelos meus serviços. - e ao dizer isso o rato começou a se afastar, indo pelo buraco da parede. - Procure a terra dos cegos. Lá você poderá ser rei, e ainda terá um botão, com o qual presentear seus súditos.


Vendo que o rato caminhava depressa, e parecia disposto a ir mesmo embora, o boneco fez uma ultima pergunta:


-Como eu faço pra sair daqui?


-Passe por baixo da porta, e desça as escadas. Depois de outra porta, você estará na rua. -respondeu o rato, já fora de vista, caminhando por algum túnel escuro. - E cuidado pra não encontrar amigos mais caros do que você pode comprar com um botão.


O som dos passos do rato desapareceu rapidamente. E o boneco viu que estava novamente sozinho. Mas apesar de não conseguir explicar, sentia-se aliviado por isso."




Postei a história porque a Natália me pediu e eu não perderia essa chance. Espero que gostem.

3 comentários:

Nat disse...

Em terra de cegos, quem tem olho é Rei!

Denis, pedi para vc postar esta história porque acho que ela pode contribuir com a discussão. E mais uma vez, adoro ela!

Anônimo disse...

adorei a historia do boneco, me senti assim hoje. to procurando a linha pra costurar o olho de novo na minha cara... hehe

Anônimo disse...

ainda bem q ainda tenho um olho pra poder fazer isso!